Presente do Dia do Escritor!


Essa escritora anda correndo com a profissão farmacêutica bombando, por isso tenho vindo muito pouco aqui. Muito menos do que vocês leitores merecem!…
Para compensar por isso, e aproveitando a comemoração do Dia Nacional do Escritor, vou dar um presentinho a vocês… porque não é só de nova capa e nova diagramação que é feita uma terceira edição!
Texto totalmente revisto, reconfigurado e redesenhado por um trabalho excelente (e divertidíssimo) junto com minhas queridas betawriters Paula Vendramini & Lhaisa Andria! Curtam o novo prólogo, com os ajustes temporais necessários!…
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Novamente Highgate Cemetery

 
“When the seventh son of the seventh son
Comes along and breaks the chain
Raoul, Raoul, Raoul and the Kings of Spain
Making it plain, making it sane
To turn this loss into a gain.” ([1])
 

Sábado, 7 de outubro de 1995, 23h55.

Através das sombrias ruas de Londres, Eileen passeava, cantarolando, num bom humor que não existia nela há algum tempo. O ano era 1995, e o tempo insistia em passar rapidamente.

“Engraçado como as pessoas se deixam impressionar por lendas e crendices tão ingênuas. Essa história de que o sétimo filho do sétimo filho seria atingido pela maldição dos lobisomens, ou por estranhas habilidades de bruxa. Se eles soubessem…”. Ela observava o cartaz meio desbotado do anúncio de mais um filme de vampiro – “Embrace of the vampire”– tão em alta desde a releitura do Drácula de Bram Stoker, há três anos.

Sentiu um leve calafrio ao embarcar nesses pensamentos. Melhor, sua mente raciocinou como se ela tivesse sentido um calafrio, pois há muito não sentia nada.

Ela acabara de sair de um restaurante no Soho, na Old Compton Street, onde tinha saboreado um delicioso frango à Kiev. Já fazia alguns anos que ela frequentava esse restaurante, tendo feito amizade com Nikolai Kovenko, o chef russo do lugar. Eileen notou que durante toda a sua permanência lá um jovem rapaz a olhava incansavelmente. Mesmo que o que ele visse era uma moça ruiva com a idade semelhante à dele, sua verdadeira forma estava distante disso.

Incomodada com o olhar insistente, ela entrou em seu conversível Dodge Dart 383 verde-escuro metálico – mais uma lembrança de Jason que conservava – e seguiu em direção a Highgate.

Enquanto atravessava a velha arquitetura londrina – na qual ainda estavam vivas memórias do notável cientista Charles Darwin e do terrível assassino Jack, o Estripador – a moça ponderava sobre sua atual condição e sobre sua enorme tendência em agarrar-se a uma humanidade, que aos poucos se esvaía por entre seus dedos.

Ao chegar a seu destino, encostou o carro na esquina da Swain’s Lane e saiu batendo a porta. Olhando para o fog ([2]), ela começou a gargalhar incontrolavelmente. Fazia muito tempo que sua reação para essas situações deixaram de ser lágrimas.

Como uma criança que brinca despreocupadamente pelas ruas, ela passou a mão pela grade do cemitério e abriu o pesado portão de ferro com facilidade. Não importava se era madrugada e qualquer transeunte achasse bizarro o horário que escolhera para visitar seus parentes mortos.

Eileen sempre achou o Highgate Cemetery de uma beleza inigualável. Um misto perfeito entre arquitetura vitoriana e natureza viva entre as lápides mortas. Ramos de trepadeiras em flor se entrelaçavam com belíssimas estátuas de anjos e criptas de famílias tradicionais inglesas em harmonia. A escuridão que envolvia o ambiente não era um problema para ela.

Eileen passou os olhos pelas lápides da ala à sua esquerda e um sorriso brotou em seus lábios.

— Talvez uma lápide com meu nome…

Não seria assim tão impossível, já que fazia quase trinta anos que Eileen Lancaster Hartmann havia subitamente evaporado. Em meio a festivais de rock e americanos pisando na Lua, uma jornalista britânica – de futuro considerado promissor – desaparecera sem deixar rastro. Durante meses a polícia do Reino Unido procurara por pistas ou indícios de um possível sequestro. Mas na entrada na década de setenta, tiveram que se resignar em considerá-la morta.

Se por um lado a polícia inglesa fez o possível para encontrar a jovem jornalista com vida na época, o serviço secreto britânico – mais conhecido como MI-6 ([3])– não fizera muito alarde com o desaparecimento da sua agente Ariel. Na espionagem, a técnica do simples desaparecimento para mergulhar na investigação de algum caso mais delicado é amplamente utilizada, mesmo hoje em dia. E como já fazia algum tempo que Bryan Wallach tinha deixado o caso Jason Pearson nas mãos de Eileen, o integrante da chefia local do MI-6 deixou sua amiga trabalhar.

Eileen chegou ao seu destino de sempre no cemitério e se sentou no túmulo, diante do mármore com a inscrição:

“W. Jason Pearson, 1935- 1969.

Que o Criador dê a ele em morte o que não

permitiram que tivesse em vida.”

Seguiam-se dizeres em holandês gravados pela família do rapaz.

Jason Pearson, aquele que fora o namorado de Eileen e também um agente do MI-6. Era para a sua lápide que ela direcionava seus desabafos e tormentos, tudo o que não tinha coragem de compartilhar com ninguém.

Pensativa, arrancou uma rosa vermelha que estava crescendo junto ao túmulo e observou suas pétalas, ouvindo ecoar em sua mente algo do passado.

“Minha bela rosa ruiva…”

— Querido, eu quis vingar sua morte e acabei indo longe demais…

Mesmo que fosse impossível, ela realmente esperava que houvesse um retorno para a sua voz.

— Espero que algum dia possa me perdoar, Jason.

— É claro que ele a perdoou, Eileen.

Loren apareceu de repente por detrás de uma estátua de um anjo, algo que ela simplesmente adorava fazer.

Eileen sacou sua pistola, sempre companheira, e fingiu alvejar a amiga com três tiros em uma reação automática. As duas gargalharam logo em seguida.

— Se eu ainda fosse viva, ou teria morrido do coração ou a matado, Loren Halmenschläger! – Ela comentou entre os risos. – Como soube que eu estava aqui, espertinha?

— Estou cansada de saber que quando não a encontro no refúgio d…

— Ah, não me fale desse sujeito, você sabe que eu não gosto!

— Ok, ok. – Loren sentou-se ao lado dela. – Ei, mas o que você estava resmungando para o Jason? Acho que ele já não aguenta mais você chorar nos pobres ouvidos dele!

A amiga acompanhara de perto toda a história da sua frustrada investigação sobre a morte do namorado, e há muitos anos vinha lhe pedindo que esquecesse isso. Sem uma resposta para a brincadeira cruel, Loren deu de ombros e murmurou:

— Vamos? – E indicou a moto novinha com um sorriso irônico indescritível.

Eileen sorriu também e aceitou o convite. Fazia bastante tempo que ela conhecia aquela alemã e acostumara-se com os repentes de humor dela. Ainda assim se espantava um pouco com as motos que Loren arranjava…

— Outra moto, Loren? E aquela linda que você estava usando na semana passada?

— Ah, eu já tinha enjoado da cor dela. Fiz meu amiguinho Robert devolver na loja e me arranjar outra. Até que é bom ter aliados entre os funcionários da concessionária!

— Bom, vou deixar meu carro aqui, depois eu volto para buscá-lo.

— E você acha mesmo que alguém vai querer roubar aquela velharia?

— Não sei, pode ter algum colecionador interessado espreitando.

Mais uma vez as duas gargalharam ao subirem na moto. Loren dobrava a esquina na South Grove ainda rindo. Quem visse as duas rindo diria que eram garotas indo se divertir muito pela noite, provavelmente no Piccadilly Circus.

“Que bela vida essa minha…”, pensou Eileen, “… apesar de tudo…”.

*~*~*~*~

([1]) “Quando o sétimo filho do sétimo filho

    Vier e quebrar a corrente

     Raoul, Raoul, Raoul e os reis da Espanha

     Fazendo disto simples, fazendo disto são

     Para transformar essa perda em um ganho.”

“Raoul and the Kings of Spain”, Tears For Fears. Música escrita por Roland Orzabal e Alan Griffiths, 1995. Em livre tradução pela autora.

([2]) Nome que leva a neblina característica de Londres.

([3]) MI é a sigla para Ministry of Intelligence (Ministério de Inteligência), ou seja, Serviço Secreto. Também chamados por SIS (Secret Intelligence Service).


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